19/05/2020

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por: Editorial Blanchet

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Categorias: Notícias

Compliance nunca foi tão necessário em contratações públicas

A caracterização da pandemia do coronavírus (covid-19) como “calamidade pública” tem inúmeros reflexos no mundo jurídico, com destaque especial para a gestão pública.

Considerando os desafios que a Administração Pública precisa enfrentar para conter as consequências da pandemia, ao mesmo tempo em que continua com a função de atender outras necessidades públicas, abre-se espaço para a flexibilização de certas normas com o objetivo de viabilizar atuações administrativas consideradas urgentes, excepcionais e indispensáveis ao interesse público.

A melhor maneira de se iniciar este artigo é deixando claro o conceito de “discurso de gênero”, uma vez que as propostas para a discussão sobre o gênero do ser humano (Sim! Somos todos seres humanos!) são diversas, seja aqui no Brasil, seja em qualquer outro lugar do mundo.

Exemplos dessas providências podem ser observados em leis de todas as esferas federativas, com destaque para a Lei Federal nº 13.929/2020, que instituiu medidas para enfrentamento da pandemia. Entre outras regras referentes às interações público-privadas, a Lei permitiu a contratação de empresas inidôneas, declarou a presunção do estado de emergência para fins de dispensa de licitação, autorizou a requisição administrativa de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas e permitiu alterações contratuais em limites acima dos previstos na legislação tradicional.

A realização de atos administrativos que outrora poderiam ser considerados desarrazoados justifica-se pela situação de calamidade pública e a necessidade de tomada de decisões urgentes e eficazes para o combate à epidemia. Do outro lado da balança, impõe-se a adoção de mecanismos de conformidade. Afinal, é justamente em momentos de exceção como o que estamos vivenciando que as regras de compliance na interação do poder público com agentes privados devem ser reforçadas, e não esquecidas. Lembramos que a Lei Anticorrupção e a Lei de Improbidade Administrativa continuam em vigor!

A flexibilização legal exige mais do que nunca o exercício rigoroso do dever de diligência. Isto não significa dizer que o poder público não possa se valer de mecanismos como a dispensa de licitação e o recebimento de doações do setor privado, mas demanda, ainda mais, que as escolhas públicas sejam justificadas, realizadas com integridade e no propósito de se atingir um benefício social maior.

É preciso, portanto, que o agente público continue atuando da forma mais estritamente legal possível, ainda que haja a flexibilização legal, buscando evitar o aumento da prática de atos de corrupção justamente em virtude das circunstâncias atualmente vividas. É justamente em um momento de crise como este que o agente público deve atuar de forma ilibada e responsável na gestão fiscal, e, ainda, promover a publicidade máxima dos atos praticados, com a maior transparência possível para este momento.

A prática de atos de corrupção continua a existir mesmo no estado de exceção e pode até mesmo ser mais recorrente, em face da flexibilização de certas normas. Por isso, é preciso mais do que nunca reforçar medidas que dificultem práticas ilícitas já conhecidas de longa data no mundo inteiro que podem se dar de diversas maneiras, dentre elas: (i) superfaturamento ou sobrepreço em virtude na necessidade e urgência da situação, (ii) descumprimento de normas regulatórias e de qualidade exigidas para a fabricação ou fornecimento de um determinado produto ou prestação de um serviço, e (iii) privilégio de um determinado fornecedor em detrimento de outro que seja mais adequado para a demanda.

Aos gestores públicos, impõe-se o dever de zelo ainda maior na formalização dos atos relativos às compras, tais como a justificativa e publicidade, a qual deve ser imediatamente disponibilizada na internet, nos termos do art. 4º, §2º da Lei nº 13.979/2020. A autorização para contratação por dispensa de licitação com base em termo de referência ou projeto básico simplificados não desobriga o órgão contratante da apresentação de justificativa, da demonstração da adequação orçamentária, da fixação de critérios de medição e da demonstração da estimativa de preços objetivos por parâmetros objetivos.

O gerenciamento de riscos ao longo da execução do contrato é indispensável, especialmente porque a Lei nº 13.979/2020, no art. 4º-D, o dispensou na fase prévia à contratação. Recomendável, ainda, a instituição de comissão de agentes de fiscalização para acompanhamento especial dos contratos celebrados por dispensa de licitação no período da calamidade pública, para harmonizar a gestão dos contratos.

Vale atentar-se às recomendações e documentos que os órgãos de controle outras entidades públicas de referência, tais como a Advocacia Geral da União, vêm editando para apoiar os gestores na tomada de decisão e nas contratações. Os órgãos de controle estão atentos ao alvoroço das contratações mais flexíveis e, após a pandemia, qualquer excesso na conta será cobrado.

Como toda moeda tem dois lados, cuidados semelhantes devem ser tomados pelas empresas privadas que contratarão com o poder público neste momento de crise. É imprescindível que a empresa intensifique as suas práticas de compliance e medidas anticorrupção na interação e negociação com os agentes públicos.

Se, por um lado, os momentos de crise dão margem para comportamentos oportunistas e atos de corrupção, por outro lado, a crise pode reforçar em muitos agentes do setor privado o sentimento de civilidade e responsabilidade social, além de estimular a honestidade e integridade em seus atos, contratos e negociações.

Cabe aos agentes privados demonstrarem a conformidade na sua atuação e interação com o poder público, redobrando cuidados como: (i) a diligência na documentação e na obtenção das respectivas autorizações regulatórias para a fabricação e fornecimento de determinado produto ou serviço, (ii) transparência na negociação, (iii) precificação justa, (iv) demonstração de idoneidade e boa-fé. A adoção de medidas de conformidade nunca foi tão necessária. Neste momento, os programas de integridade “elaborados para inglês ver” serão postos à prova. Não há que se olvidar que a sociedade está mudando com a crise da covid 19 e os oportunistas de plantão certamente serão lembrados quando a turbulência passar. Dentre tantos legados negativos que a pandemia pode nos deixar, esse é daqueles que pode ser evitado.

*Gabriela Blanchet, sócia-fundadora do escritório Blanchet Advogados, líder da área de Governança Corporativa, Riscos e Compliance. Diretora executiva do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial – IBDEE. Membro do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC. Coordenadora do squad jurídico do grupo Techs for Testing. Autora de artigos e palestrante

*Marcela de Oliveira Santos, advogada na Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Sociedade de Advogados, em São Paulo/SP. Professora de cursos e pós-graduação. Diretora Administrativa do Instituto Brasileiro de Direito e Ética Empresarial – IBDEE